sexta-feira, 29 de agosto de 2014

O Método Christie - OS ASSASSINOS E A LINHA DO TEMPO



DESORGANIZANDO A ORDEM CRONOLÓGICA



Agatha Christie


      (Obs: este artigo NÃO contém ending spoiler!)


No artigo Agatha Christie e a Esperteza dos Assassinos (parte 1 e 2), eu propus uma classificação para os métodos utilizados pelos assassinos nas estórias concebidas por Agatha Christie. Conforme coloquei inicialmente, tal classificação não é definitiva, nem tampouco extingue todas as possibilidades de análise estrutural de sua obra: trata-se apenas de um viés que segui ao analisá-la, com o foco incidindo sobre o modus operandi dos seus criminosos.

À luz de outra perspectiva, podemos notar uma característica em particular, comum a vários assassinos criados por Agatha Christie: sua capacidade de mudar o curso do tempo. Trata-se de um recurso utilizado por estes criminosos durante o processo de execução de seus crimes, método este de suma importância para que as suspeitas não recaiam sobre eles e, consequentemente, pareçam inocentes como um bebê sorridente segurando sua chupeta.




O RECURSO DA MÁQUINA DO TEMPO







Mas, como assim mudar o curso do tempo

Bem, é claro que eles não são capazes de mudar o curso natural do tempo de verdade: apenas se utilizam de subterfúgios para dar a impressão que uma determinada coisa aconteceu em um dado momento, mas na realidade, não aconteceu! Ao fazerem isso, estes criminosos conseguem confundir a todos, inclusive a polícia e os detetives. Além disso, ao enganarem as pessoas fazendo com que acreditem que certo acontecimento se deu na ocasião cuidadosamente escolhida por eles, os assassinos podem construir álibis perfeitos para si mesmos através de testemunhas irrefutáveis.

É o que acontece, por exemplo, quando o assassino, ou assassinos cúmplices, se utilizam de esquemas planejados com precisão com o propósito de fazer parecer que:






 * a vítima, já falecida na realidade, deu um telefonema para uma outra pessoa bem na frente do próprio assassino, tornando-se esta outra pessoa uma testemunha de que naquela hora a vítima estava viva e também um álibi para o assassino;

* o assassinato ocorreu em uma determinada hora no passado em que o assassino tinha um ótimo álibi, mas na verdade, aquilo não foi um assassinato real: foi apenas um engodo ou uma encenação, e assim o assassino tem a chance de matar a pessoa em outra ocasião mais propícia;

* de forma semelhante, o assassinato real ocorreu em um determinado momento bem antes da hora em que todos pensam que ele ocorreu, de modo que novamente o assassino fica salvaguardado por um álibi

* a vítima, que já está morta, é vista e reconhecida em um lugar público, como uma estação de trem, por exemplo, mas na realidade, tratava-se de um cúmplice ou do próprio assassino disfarçado como sendo a vítima;

* o assassino simula sua própria morte, tornando-se obviamente inocente do outro assassinato que ainda irá cometer.

Em todos esses casos, o verdadeiro e exato momento do crime fica escondido sob a cortina de fumaça da nova e falsa ordem cronológica dos fatos que foi criada habilmente pelo assassino.




MANIPULANDO O TEMPO E AS PESSOAS







A fim de conseguirem enganar as pessoas dando uma impressão falsa dos acontecimentos na linha do tempo, diversos recursos cênicos são utilizados pelos assassinos e seus cúmplices. Através deles, os criminosos conseguem manipular os outros mexendo com seus sentidos e provocando certos efeitos psicológicos esperados sobre eles. Em outras palavras, os criminosos usam do poder de sugestão para fazer com que as pessoas, vendo ou ouvindo uma certa coisa sutilmente escolhida pelo assassino – por exemplo, um brilho metálico na mão de alguém – acreditem piamente que viram ou ouviram uma outra coisa – ou seja, uma pessoa segurando uma faca.


Como alguns dos muitos estratagemas comuns na aplicação do recurso da máquina do tempo, temos a produção de sons e imagens que têm o objetivo de manipular os sentidos das pessoas, tais como:


* tiros disparados ao léu, ruído de objetos caindo;

* gritos agonizantes ou gemidos engasgados, ruído de combate corpo a corpo;

* portas ou janelas se abrindo ou batendo ao fechar;

* ligações telefônicas falsas; campainha da porta de entrada;

* telegramas, cartas, postais, bilhetes, recados falsos;

* pessoas conversando ou cochichando.



O TEMPO CORRE MESMO IGUAL PARA TODOS?






Este tipo de subterfúgio adiciona uma óbvia complicação ao caso, uma vez que, o fluir tempo constitui uma verdade absoluta para todos. Ao bagunçar com a ordem cronológica, Agatha Christie adiciona mais um tempero à genialidade de seu método. Afinal, arrumar os acontecimentos na ordem exata como ocorreram é a premissa básica para qualquer investigador, dos mais novatos ao sublime Hercule Poirot. 

Em todo caso, um mistério nesta questão do tempo ainda permanece obscuro: como é que Agatha Christie consegue burlar o tempo, a história, os críticos mordazes e as gerações, e continuar sendo tão intrigante, tão admirada e tão lida em escala mundial?


Um mistério que só o tempo poderá revelar...



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Exemplos:


Atenção: a partir deste ponto: ending spoiler!!




Alguns exemplos de obras onde o assassino lança mão do recurso da máquina do tempo são:

Morte na Rua Hickory (1955) – a vítima telefona para o assassino bem na presença de ninguém mais, ninguém menos que Hecule Poirot.

O Caso dos Dez Negrinhos (1943) – o assassino simula a própria morte e continua matando outras pessoas.

Morte na Praia (1941) – os criminosos simulam um assassinato para uma hora em que ambos possuem um álibi, e cometem o verdadeiro crime mais tarde.

O Natal de Poirot (1938) – o assassinato é cometido 1 hora antes da hora que todos pensam que o crime aconteceu, providenciando assim um álibi para o assassino.

O Mistério do Trem Azul (1928) – a cúmplice do assassino se disfarça como a vítima para ser vista em uma estação de trem em um momento no qual a morte já havia ocorrido.



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