O 1º CAPÍTULO DE
OS CRIMES DO MONOGRAMA
por Sophie Hannah
Neste mês de setembro de 2015, o universo de fãs
de Agatha Christie comemora seu aniversário e celebra esta que é a maior
escritora de literatura de crime e mistério do mundo. E esta blogazine
especialmente dedicada à Rainha do Crime não poderia ficar de fora!
Os eventos comemorativos deste ano estão focados
especialmente no lançamento de Os Crimes do Monograma, escrito por
Sophie Hannah e inspirado no personagem e na literatura de Agatha Christie, trazendo
o mais novo caso de nosso detetive favorito, Hercule Poirot!
Mas você ainda não adquiriu o seu exemplar? Não
se preocupe!
A Editora
Nova Fronteira, que lança o livro no Brasil, gentilmente cedeu a esta
blogazine o 1º capítulo para publicação, a fim de que você possa ter um
gostinho do que vai ser esta nova aventura de Poirot!
Divirtam-se!!
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OS CRIMES DO MONOGRAMA
O NOVO MISTÉRIO DO DETETIVE POIROT
por Sophie Hannah
Os crimes do monograma © 2014, Agatha
Christie Limited. Todos os direitos reservados.
AGATHA
CHRISTIE® [POIROT®] é uma marca registrada de
Agatha
Christie Limited no Reino Unido e/ou em outros locais.
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portuguesa no Brasil adquiridos pela Editora Nova Fronteira Participações S.A.
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O
Soneto 70 de William Shakespeare que aparece na página 104 foi
traduzido por Thereza Christina Rocque da
Motta (Ibis Libris, 2009).
CIP-BRASIL.
CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO
NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
H219c
Hannah,
Sophie
Os crimes do monograma / Sophie Hannah ;
tradução Alyne
Azuma.
- 1. ed. - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2014.
23 cm.
Tradução de: The Monogram Murders
ISBN 9788520939253
1. Romance inglês. I. Azuma, Alyne. II.
Título.
14-14586 CDD: 823
CDU: 821.111-3
para Agatha Christie
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Capítulo 1
Jennie em fuga
— O que estou dizendo é
que não gosto dela — sussurrou a garçonete de cabelo esvoaçante. Foi um
sussurro alto, facilmente entreouvido pelo cliente solitário que estava no
Pleasant’s Coffee House, que se perguntou se esse “ela” em questão seria outra
garçonete ou uma cliente regular como ele.
— Não sou obrigada a
gostar dela, sou? Se pensa diferente, é você quem sabe.
— Ela me pareceu até
simpática — comentou a garçonete mais baixa, de rosto redondo, parecendo menos
convicta do que alguns minutos antes.
— É o que ela faz quando
fica com o orgulho ferido. Assim que se recupera, sua língua começa a destilar
veneno de novo. Devia ser o contrário. Conheço muita gente assim... Nunca
confie nesse tipo.
— Como assim “o
contrário”? — perguntou a garçonete de rosto redondo.
Hercule Poirot, o único
cliente no café às sete e meia naquela noite de quinta em fevereiro, sabia o
que a garçonete de cabelo esvoaçante queria dizer. E sorriu para si mesmo. Não
era a primeira vez que ela fazia um comentário sagaz.
— É perdoável alguém
dizer uma indelicadeza num momento difícil; eu mesma já fiz isso, não me
importo em admitir. E, quando estou feliz, quero que os outros fiquem felizes.
É assim que deve ser. Mas existem pessoas, como
ela, que tratam os outros pior quando as coisas vão bem. É com elas que
você precisa se preocupar.
“Bien vu”, pensou
Hercule Poirot. “De la vraie sagesse populaire.”
A porta do café se abriu
de repente e bateu na parede. Uma mulher, usando casaco marrom-claro e chapéu
de um tom mais escuro, parou no batente. Tinha cabelos louros. Poirot não
conseguiu ver o rosto. Ela estava com o rosto virado, olhando por sobre o
ombro, como se esperasse alguém.
Alguns segundos de porta
aberta foram suficientes para que o ar frio da noite acabasse com todo o
aquecimento do pequeno recinto. Normalmente isso teria enfurecido Poirot, mas
ele estava interessado na recém-chegada, que havia feito uma entrada tão
dramática e nem parecia se importar com a impressão causada.
Ele cobriu a xícara com
a mão na esperança de preservar a tempera-tura de seu café. Esse pequeno
estabelecimento de paredes encurvadas da St. Gregory’s Alley, em uma parte de
Londres que estava longe de ser a mais distinta, preparava o melhor café que
Poirot já tinha tomado no mundo inteiro. Em geral ele não bebia café antes do
jantar, nem depois — aliás, essa ideia o deixaria horrorizado em circunstâncias
normais —, mas toda quinta-feira, quando ia ao Pleasant’s às sete e meia em
ponto, abria uma exceção à regra. A essa altura, ele considerava a exceção se-manal
uma singela tradição.
Poirot gostava bem menos
das outras tradições relacionadas àquele café: ter de posicionar os talheres, o
guardanapo e o copo d’água corretamente na mesa, ao chegar e se deparar com
tudo desalinhado. Era evidente que, para aquelas garçonetes, bastava que os
itens estivessem em algum lugar — qualquer lugar — da mesa. Poirot discordava e
fazia questão de impor a ordem assim que chegava.
— Com licença, a
senhorita se importa de fechar a porta se for entrar? — pediu a Cabelo
Esvoaçante à mulher de chapéu e casaco marrons, que continuava olhando para a
rua com uma das mãos apoiada no batente. — Ou mesmo que não vá entrar. Nós, que
estamos aqui dentro, não queremos congelar.
A mulher deu um passo e
entrou. Fechou a porta, mas não se desculpou por tê-la mantido aberta por tanto
tempo. Sua respiração irregular era audível mesmo do outro lado do salão. Ela
parecia não notar que havia outras pessoas presentes. Poirot a cumprimentou com
um discreto boa-noite. A mulher virou de leve o rosto para ele, sem esboçar uma
resposta. Seus olhos estavam arregalados, com um temor incomum — poderoso o bastante
para paralisar qualquer incauto, com uma força quase física.
Poirot não estava mais
sentindo a calma e o contentamento de quando chegara. Seu plácido estado de
espírito tinha sido perturbado.
A mulher correu para a
janela e olhou para fora. Ela não vai encontrar o que quer que esteja
procurando, pensou Poirot. Quando se olha para a escuridão da noite de dentro
de um lugar bem-iluminado, o vidro reflete a imagem de onde se está e fica
difícil ver muito além. No entanto, ela continuou olhando nessa direção por
algum tempo, parecendo determinada a observar a rua.
— Ah, é você — disse a
Cabelo Esvoaçante um tanto impaciente. — O que foi? Aconteceu alguma coisa?
A mulher de casaco e
chapéu marrons se virou.
— Não, eu... — As
palavras saíram como um soluço. Então conseguiu se recompor. — Não. Posso ficar
na mesa do canto? — Ela apontou para a mesa mais distante da porta de entrada.
— Você pode ficar em
qualquer mesa, fora a que aquele senhor está ocupando. Estão todas postas. — Ao
se lembrar de Poirot, Cabelo Esvoaçante acrescentou: — Seu jantar está quase
pronto, senhor.
Poirot ficou feliz com a
notícia. A comida do Pleasant’s era quase tão boa quanto o café. Aliás, quando
pensava nos dois juntos, Poirot achava difícil acreditar no que sabia ser verdade:
todos os que trabalhavam na cozinha ali eram ingleses. “Incroyable.”Cabelo
Esvoaçante se voltou para a mulher aflita.
— Tem certeza de que não
aconteceu nada, Jennie? Parece que você ficou frente a frente com o diabo.
— Estou bem, obrigada.
Uma xícara de chá quente e forte é tudo de que preciso. O de sempre, por favor.
Jennie correu para a
mesa mais distante, passando por Poirot sem olhar para ele, o qual virou um
pouco a cadeira para poder observá-la. Com certeza quase absoluta alguma coisa
tinha acontecido; algo que ela não queria comentar com as garçonetes do café,
obviamente.
Sem tirar o chapéu nem o
casaco, ela ocupou uma cadeira de costas para a porta de entrada, mas, assim
que se sentou, virou-se de novo para olhar por sobre o ombro. Poirot pôde assim
examinar o rosto da mulher, e deduziu que ela tinha cerca de quarenta anos.
Seus grandes olhos azuis estavam arregalados e não piscavam. Parecia, Poirot refletiu,
que estavam vendo uma imagem chocante — “frente a frente com o diabo”, como
Cabelo Esvoaçante tinha comentado. Mas, até onde Poirot podia ver, não havia
nenhuma imagem assim diante de Jennie, apenas o salão quadrangulado com mesas,
cadeiras, o cabideiro de madeira para chapéus e casacos no canto e as
prateleiras envergadas, suportando o peso de chaleiras de diferentes cores,
estampas e tamanhos.
Aquelas prateleiras eram
o suficiente para deixar alguém com calafrios! Poirot não entendia por que uma
prateleira encurvada não podia ser simplesmente substituída por uma reta, assim
como não compreendia por que alguém colocaria um garfo em uma mesa quadrada sem
se certificar de que ele ficasse paralelo à borda lateral. No entanto, nem
todos pensavam como Hercule Poirot; fazia tempo que ele havia aceitado o fato —
tanto as vantagens quanto as desvantagens que isso lhe trazia.
Virada na cadeira, a
mulher — Jennie — olhava aterrorizada para a porta, como se esperasse que
alguém fosse surgir a qualquer momento. Estava tremendo, talvez em parte por
causa do frio.
Não — Poirot mudou de
ideia —, não tinha nada a ver com o frio. O local já estava aquecido de novo.
E, como Jennie estava decidida a olhar para a porta e, mesmo assim, ficar
sentada de costas e o mais longe possível da entrada, só era possível chegar a
uma conclusão.
Pegando sua xícara de
café, Poirot se levantou e foi até onde ela estava sentada. Notou que a mulher
não usava aliança.
— Poderia me sentar um
pouco, Mademoiselle? — Poirot teria gostado de arrumar os talheres, o
guardanapo e o copo d’água daquela mesa, como havia feito na sua, mas se
conteve.
— Como? Sim, acho que
sim. — O tom revelava que ela não se importava nem um pouco. Só estava
preocupada com a porta do estabelecimento. Continuava olhando avidamente para a
entrada, ainda virada na cadeira.
— Deixe que eu me
apresente. Meu nome é... hum... — Poirot se deteve. Se dissesse seu nome,
Cabelo Esvoaçante e a outra garçonete ouviriam, e ele não seria mais o “senhor
francês”, o policial aposentado. O nome Hercule Poirot tinha um efeito poderoso
em algumas pessoas. Nas últimas semanas, desde que havia entrado em um
agradável estado de hibernação, Poirot tinha sentido pela primeira vez em muito
tempo o alívio de não ser ninguém específico.
Não poderia estar mais
claro que Jennie não estava interessada em seu nome nem em sua presença. Uma
lágrima que havia escapado do canto do olho dela escorria pelo rosto. —
Mademoiselle Jennie — disse Poirot, esperando que, ao usar o primeiro nome,
tivesse mais sucesso em chamar sua atenção. — Eu era policial. Estou aposentado
agora, mas, antes disso, vi em meu trabalho muitas pessoas em estados de
agitação semelhantes ao que a senhorita se encontra agora. Não me refiro
àqueles que estão infelizes, ainda que sejam abundantes em qualquer país. Não,
estou falando de pessoas que acreditavam estar em perigo.
Finalmente surtiu
efeito. Jennie fixou os olhos assustados e arregalados nele.
— Um... Um policial?
— Oui. Eu me aposentei
muitos anos atrás, mas...
— Então o senhor não
pode fazer nada em Londres? Não pode... quero dizer, não tem poder aqui? De
prender criminosos ou coisas assim?
— Exato. — Poirot sorriu
para ela. — Em Londres, sou apenas um idoso, desfrutando sua aposentadoria. Ela
não olhava para a porta fazia quase dez segundos.
— Estou certo,
Mademoiselle? A senhorita acredita estar em pe-rigo? Está olhando por sobre o
ombro porque desconfia que a pessoa de quem tem medo a seguiu até aqui e vai
entrar por aquela porta a qualquer momento?
— Ah, estou em perigo,
sim! — Ela parecia querer dizer mais. — Tem certeza de que o senhor não pode
atuar como policial ou algo do gênero?
— Não posso de modo
algum — garantiu ele. Sem querer que a mulher achasse que ele não tinha nenhuma
influência, Poirot acrescentou: — Tenho um amigo que é detetive da Scotland
Yard, se precisar da ajuda da polícia. Ele é bastante jovem, trinta e poucos
anos, mas acredito que tem futuro. E ficaria feliz em falar com a senhorita,
tenho certeza. De minha parte, posso oferecer... — Poirot parou de falar quando
a garçonete de rosto redondo se aproximou com uma xícara de chá.
Depois de servi-la a
Jennie, ela foi para a cozinha. Cabelo Esvoaçante também tinha se retirado para
o mesmo lugar. Sabendo que a garçonete gostava de comentar o comportamento dos
clientes regulares, Poirot imaginou que, naquele momento, estivesse tentando
promover uma discussão acalorada sobre o Senhor Estrangeiro e sua inesperada visita
à mesa de Jennie. Ele não costumava falar mais do que o necessário com nenhum dos
clientes do Pleasant’s. Com exceção de quando jantava lá com seu amigo Edward
Catchpool — o detetive da Scotland Yard com quem temporariamente estava morando
numa pensão —, Poirot se confinava à sua própria companhia, no espírito de la
hibernation. As fofocas das garçonetes do café não lhe interessavam; estava
grato pela conveniente ausência delas. E esperava que isso deixasse Jennie mais
disposta a falar com franqueza.
— Eu ficaria feliz em
oferecer meu aconselhamento, Mademoiselle.
— O senhor é muito gentil,
mas ninguém pode me ajudar. —
Jennie enxugou os olhos.
— Eu gostaria de ser ajudada... mais do que qualquer coisa! Mas é tarde demais.
Já estou morta, entende, ou logo vou estar. Não posso me esconder para
sempre.Já estou morta... As palavras dela trouxeram uma nova onda de frio ao
lugar.
— Então, veja, não há
como ajudar — continuou —, e, mesmo que houvesse, eu não mereceria. Mas... me
sinto um pouco melhor com o senhor aqui. — Ela colocou os braços em volta do
corpo para se reconfortar, ou como uma tentativa vã de parar de tremer. Não
tinha tomado uma gota do chá. — Por favor, fique. Nada vai acontecer enquanto
eu estiver conversando com o senhor. É um consolo, pelo menos.
— Mademoiselle, isso é
muito preocupante. A senhorita está viva agora, e precisamos fazer o que for
necessário para mantê-la assim. Por favor, me diga...
— Não! — Ela arregalou
os olhos e se encolheu na cadeira. — Não, o senhor não pode! Nada deve ser
feito para impedir isso. Não há como impedir, é impossível. Irremediável.
Quando eu estiver morta, a justiça será feita, finalmente. — Ela olhou por
sobre o ombro em direção à porta novamente.Poirot franziu o cenho. Talvez
Jennie estivesse se sentindo melhor depois que ele se sentou à sua mesa, mas,
sem dúvida, ele se sentia pior.
— Estou entendendo
direito? A senhorita está sugerindo que quem a está perseguindo pretende
assassiná-la?Jennie fixou seus olhos azuis lacrimejantes nele.
— É assassinato se você
desiste e deixa acontecer? Estou tão cansada de fugir, de me esconder, de
sentir tanto medo. Quero que acabe logo, se vai acontecer, e vai, porque
precisa acontecer. É a única maneira de acertar as coisas. É o que eu mereço.
— Não pode ser — disse
Poirot. — Sem saber os detalhes do seu problema, discordo da senhorita. Um
assassinato nunca pode estar certo. Meu amigo, o policial... A senhorita
precisa deixar que ele a ajude.
— Não! O senhor não pode
contar palavra alguma disso a ele, nem a ninguém. Prometa que não vai
contar!Hercule Poirot não tinha o hábito de fazer promessas que não podia
cumprir.
— O que a senhorita
poderia ter feito que merecesse a punição na forma de um assassinato? A
senhorita tirou a vida de alguém?
— Não faria diferença se
fosse o caso! O assassinato não é a única coisa imperdoável, sabia? Não imagino
que o senhor já tenha feito algo realmente imperdoável, não é?
— E a senhorita fez? E
acredita que precisa pagar com a própria vida? Non. Isso não está certo. Se eu
pudesse convencê-la a me acompanhar à minha pensão... fica bem perto daqui. Meu
amigo da Scotland Yard, o sr. Catchpool...
— Não! — Jennie levantou
da cadeira de um salto.
— Por favor, sente-se,
Mademoiselle.
— Não. Ah, eu falei
demais! Como sou idiota! Só contei porque o senhor parece tão gentil, e achei
que não pudesse fazer nada. Se não tivesse contado que estava aposentado e era
de outro país, eu nunca teria dito nada! Prometa: se eu for encontrada morta, o
senhor vai pedir ao seu amigo policial que não procure meu assassino. — Ela
fechou os olhos com força e juntou as mãos. — Ah, por favor, não deixe ninguém abrir
as bocas! Esse crime nunca deve ser solucionado. Promete que vai dizer isso ao
seu amigo policial e que vai fazê-lo concordar? Se o senhor dá valor à justiça,
por favor, faça o que estou pedindo.
Ela correu até a porta.
Poirot se levantou para segui-la, mas, ao notar a distância que ela havia
percorrido no tempo que ele levou para se levantar, voltou a se sentar com um
suspiro pesado. Era inútil. Jennie tinha ido embora, noite adentro. Ele nunca a
alcançaria.
A porta da cozinha se
abriu, e Cabelo Esvoaçante apareceu com o jantar. O aroma embrulhou seu estômago;
Poirot tinha perdido completamente o apetite. — Onde está Jennie? — perguntou
Cabelo Esvoaçante, como se de alguma maneira ele fosse responsável pelo
desaparecimento da mulher. De fato, ele se sentia responsável. Se tivesse agido
mais rápido, se tivesse escolhido as palavras com mais cautela... — É o cúmulo!
— Cabelo Esvoaçante
largou a refeição de Poirot com força na mesa e voltou para a cozinha. Em
seguida, escancarou a porta e gritou: — Aquela Jennie foi embora sem pagar.
— Mas pelo que ela
deveria ter pagado? — murmurou Hercule Poirot para si mesmo.
*
No minuto seguinte,
depois de uma breve e malsucedida tentativa de se animar com seu prato de filé
com suflê de aletria, Poirot bateu à porta da cozinha do Pleasant’s. Cabelo
Esvoaçante abriu uma fresta, para que nada ficasse visível para além de sua forma
esguia no batente.
— Algo errado com seu
jantar, senhor?
— Por favor, permita-me
pagar pelo chá que Mademoiselle Jennie abandonou — ofereceu Poirot. — Em troca,
a senhorita faria a gentileza de responder uma ou duas perguntas?
— Então o senhor conhece
Jennie? Nunca vi os senhores juntos antes.
— Non. Eu não a conheço.
Por isso quero fazer algumas perguntas.
— Por que então foi se
sentar com ela?
— Ela estava com medo e
muito aflita. Fiquei incomodado. Achei que talvez pudesse oferecer ajuda.
— Gente como Jennie não
pode ser ajudada — disse Cabelo Esvoaçante. — Certo, vou responder suas
perguntas, mas antes quero perguntar uma coisa: onde o senhor era policial?
Poirot não comentou que
ela já havia feito três perguntas. Essa era a quarta.
A garçonete o observava
com os olhos bem apertados.
— Em um lugar onde se
fala francês, mas não a França, certo? — quis saber. — Já reparei na cara que o
senhor faz quando as meninas daqui dizem “o senhor francês”.
Poirot sorriu. Talvez
não fizesse mal à garçonete saber seu nome.
— Meu nome é Hercule
Poirot, Mademoiselle. Da Bélgica. É um prazer conhecê-la. — E estendeu a mão.
Cabelo Esvoaçante
apertou a mão dele.
— Fee Spring. Euphemia,
na verdade, mas todo mundo me chama de Fee. Se me chamassem pelo nome completo,
ninguém conseguiria terminar a frase, não é? Não que eu fosse me importar
muito.
— A senhorita sabe o
nome completo de Mademoiselle Jennie?Fee assentiu na direção da mesa de Poirot,
de onde ainda saía o vapor do prato intocado.
— Coma. Vou sair já, já.
— E se afastou de repente, fechando a porta no rosto dele.
Poirot voltou à sua
mesa. Talvez ele seguisse o conselho de Fee Spring e fizesse outra tentativa de
comer o filé. Que estimulante falar com alguém atento a detalhes. Hercule
Poirot não encontrava muitas pessoas assim.
Fee ressurgiu logo com
uma xícara na mão, sem pires. Deu um gole ao sentar na cadeira que Jennie havia
deixado vaga. Poirot conseguiu não estremecer diante do som.
— Não sei muito sobre
Jennie — começou ela. — Só o que notei
das coisas estranhas que ela já disse. Ela trabalha para uma senhora, dona de
um casarão. E mora lá. Por isso vem aqui com tanta frequência, para pegar o
café e os bolos de sua senhoria, para os jantares, as festas chiques e coisas
assim. Ela comentou uma vez que vem do outro lado da cidade. Muitos clientes
regulares vêm de longe. Jennie sempre fica para tomar algo. “O de sempre, por
favor”, ela diz ao chegar, como se fosse a patroa. E faz uma voz fingindo ser
importante, acho. Não é a voz que nasceu com ela. Deve ser por isso que não
fala muito, porque sabe que não conseguiria mantê-la por muito tempo.
— Perdoe-me —
interrompeu Poirot —, mas como sabe que
Mademoiselle Jennie nem sempre falou assim?
— O senhor já ouviu uma
conversa informal tão correta assim? Eu nunca ouvi.
— Oui, mais... Então é
apenas especulação?
Fee Spring admitiu com
relutância que não tinha certeza. Desde que a conhecera, Jennie sempre falou
como “uma verdadeira dama”.
— De uma coisa eu sei a
favor de Jennie: é uma garota do chá, então pelo menos tem um pouco de bom
senso.
— Uma garota do chá?—
Isso mesmo. — Fee cheirou a xícara de café de Poirot. — Todos vocês que bebem
café quando poderiam beber chá precisam ir ao médico, se quiser a minha
opinião.
— A senhorita não sabe o
nome da mulher para quem Jennie trabalha, ou o endereço da casa? — perguntou
Poirot.
— Não. Também não sei o
sobrenome dela. Sei que ela sofreu uma terrível decepção amorosa muitos anos
atrás. Ela comentou uma vez.
— Decepção amorosa? Ela
disse de que tipo?
— Só existe um —
respondeu Fee, resoluta. — Do tipo que parte o coração.
— O que quis dizer foi
que existem muitos motivos para uma
decepção amorosa: o amor não correspondido, a perda trágica de alguém amado na
juventude...
— Ah, eu nunca soube da
história — disse Fee, com um toque de amargura na voz. — Nem vou saber. Duas
palavras, “coração partido”, foi tudo o que ela disse. Sabe, Jennie é assim,
ela não fala. O senhor não poderia ajudá-la mesmo que ela ainda estivesse
sentada nesta cadeira, assim como não pode ajudá-la agora que ela foi embora.
Ela é totalmente fechada em si mesma, esse é o problema dela. Gostar de chafurdar
nisso, no que quer que seja.
Fechada em si mesma...
As palavras ativaram a memória de Poirot: uma noite de quinta-feira muitas
semanas atrás, e Fee falando de uma cliente.
Ele disse:
— Ela não faz perguntas,
n’est-ce pas? Não está interessada em bater papo. Não quer saber o que tem
acontecido na vida dos outros.
— Exatamente! — Fee
parecia impressionada. — Não há nem um pingo de curiosidade nela. Nunca conheci
alguém tão autocentrado. Que simplesmente não vê o mundo nem nós, que estamos
nele. Ela nunca pergunta como você está, ou que tem feito. — Fee inclinou a cabeça
para o lado. — O senhor pega as coisas rápido, não é?
— Sei o que sei apenas
por ouvi-la conversar com as outras garçonetes, Mademoiselle.
O rosto de Fee ficou
vermelho.
— Estou surpresa que o
senhor tenha se dado ao trabalho de ouvir.
Como não desejava
constrangê-la mais, Poirot não comentou que esperava ansiosamente as descrições
dela dos indivíduos que ele passara a chamar coletivamente de “Personagens do
Café” — o sr. Não Exatamente, por exemplo, que toda vez fazia um pedido e então
o cancelava no minuto seguinte, pois havia decidido que não era exatamente o
que queria.
Aquele não era o momento
apropriado para perguntar se Fee tinha um apelido desse tipo para Hercule Poirot,
usado em sua ausência — fazendo talvez uma menção ao distinto bigode.
— Então Mademoiselle
Jennie não gosta de saber da vida dos outros — recapitulou Poirot, pensativo —,
mas, ao contrário de tantas pessoas que não têm interesse na vida e nas ideias dos
que estão à sua volta e só falam de si mesmas sem parar, ela também não faz
isso, correto?
Fee levantou as
sobrancelhas.
— Bela memória, a do
senhor. Está certo de novo. Não, Jennie não é do tipo que fala de si mesma. Ela
responde perguntas, mas não se demora. Não quer ficar muito tempo longe do que
está em sua cabeça, seja lá o que for. Seu tesouro particular... Só que isso
não a faz feliz, o que quer que esteja remoendo. Há tempos desisti de tentar
entender.
— Ela fica remoendo o
coração partido — murmurou Poirot. — E o perigo.
— Ela disse que estava
em perigo?
— Oui, Mademoiselle.
Lamento não ter sido rápido o bastante para impedi-la de sair. Se alguma coisa
lhe acontecer... — Poirot balançou a cabeça e desejou poder recuperar a
sensação de tranquilidade que sentia quando chegara. Ele deu um tapa na mesa
quando tomou sua decisão. — Vou voltar aqui demain matin. Você disse que ela
vem sempre aqui, n’est-ce pas? Vou encontrá-la antes do perigo. Dessa vez,
Hercule Poirot, ele vai ser mais rápido!
— Rápido ou devagar, não
importa — disse Fee. — Ninguém consegue encontrar Jennie, mesmo que ela esteja
diante do seu nariz, e ninguém pode ajudá-la. — Ela se levantou e recolheu o
prato de Poirot. — Não faz sentido deixar um belo prato esfriar por conta
disso.